TESTAMENTO
Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos
Se eu morrer
quero que a minha filha não se esqueça de mim
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita
Dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas de somar
e a descascar batatas
Preparem a minha filha
para a vida
se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu
Que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras
ANA LUÍSA AMARAL, Minha Senhora de Quê, Quetzal Editores, Lisboa, 1999: 61, 62
1 comentário:
Quando eu morrer também quero que alguém mostre à indiazinha um pontinho luminoso lá no céu e lhe cante as minhas aventuras esfuziantes, para ela procurar sempre o lado mais fantástico e menos óbvio das coisas.
Obrigada por partilhares este texto tão intenso.
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