01 novembro, 2007

Quem não tem medo de viajar de avião?

TESTAMENTO

Vou partir de avião

e o medo das alturas misturado comigo

faz-me tomar calmantes

e ter sonhos confusos



Se eu morrer

quero que a minha filha não se esqueça de mim

que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada

e que lhe ofereçam fantasia

mais que um horário certo

ou uma cama bem feita



Dêem-lhe amor e ver

dentro das coisas

sonhar com sóis azuis e céus brilhantes

em vez de lhe ensinarem contas de somar

e a descascar batatas



Preparem a minha filha

para a vida

se eu morrer de avião

e ficar despegada do meu corpo

e for átomo livre lá no céu



Que se lembre de mim

a minha filha

e mais tarde que diga à sua filha

que eu voei lá no céu

e fui contentamento deslumbrado

ao ver na sua casa as contas de somar erradas

e as batatas no saco esquecidas

e íntegras



ANA LUÍSA AMARAL, Minha Senhora de Quê, Quetzal Editores, Lisboa, 1999: 61, 62

1 comentário:

Anónimo disse...

Quando eu morrer também quero que alguém mostre à indiazinha um pontinho luminoso lá no céu e lhe cante as minhas aventuras esfuziantes, para ela procurar sempre o lado mais fantástico e menos óbvio das coisas.

Obrigada por partilhares este texto tão intenso.