13 setembro, 2006

Poema

Poema à boca fechada


Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.


(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)

José Saramago
Saramago Poeta, confesso que para mim foi uma surpresa agradável!
Desconhecia este seu lado e apesar de não ser uma apreciadora de poesia, tenho gostado do que tenho lido.

2 comentários:

as velas ardem ate ao fim disse...

Eu também desconhecia mas acho que o termo poeta lhe cai muito bem.bjinhos


http://www.blogger.com/post-edit.g?blogID=22723273&postID=115798166424778796

Anónimo disse...

Muito bom! Bonito poema! Também desconhecia esta faceta de Saramago! Mas está aprovadissimo!