30 setembro, 2006

Infante D. Francisco, mais um personagem da nossa História

«Levantemos agora os nossos próprios olhos, que é tempo de ver o infante D. Francisco a espingardear, da janela do seu palácio, à beirinha do Tejo, os marinheiros que estão empoleirados nas vergas dos barcos, só para provar a boa pontaria que tem, e quando acerta e eles vão cair no convés, sangrando todos, um que outro morto, e se a bala errou não se livram de um braço partido, dá o infante palmas de irreprimível júbilio, enquanto os criados lhe carregam outra vez as armas(...)»
in Memorial do Convento, Ed. RBA, P. 77

O que passaria na cabeça do infante D. Francisco para ver divertimento onde os outros vêem sofrimento e falta de humanidade? Divertia-se a atirar sobre os marinheiros. Que tipo de homem era este D. Francisco?

Agora percebo os receios e os sonhos da rainha. O infante D. Francisco ambicionava a coroa e chegava, na ausência do rei, a cortejar a rainha, sua cunhada.

28 setembro, 2006

Uma mulher grávida ...

«Uma mulher grávida, rainha ou comum, tem um momento na vida em que se sente sábia de todo o saber, ainda que intraduzível em palavras, mas depois, com o inchar excessivo da barriga e outras misérias do corpo, só para o dia de parir têm pensamentos, nem todos alegres, quantas vezes aterradas por agoiros (...)»
in Memorial do Convento, Ed. RBA, p. 67

As mulheres têm o privilégio de gerarem e trazerem dentro de si um ser. No entanto, para equilibrar esse privilégio são elas que sofrem as dores de o parir.

27 setembro, 2006

Ainda a propósito...

Esta imagem conhecida por Passarola, nunca existiu, foi apenas uma invenção da imprensa para criticar o Padre Bartolomeu de Gusmão.
No dia 8 de Agosto de 1708, Bartolomeu de Gusmão perante o Rei D João V e da Rainha, fez voar um balão feito de papel prado e com ar quente a 4 metros de altura, não foi mais longe porque os criados destruiram a obra com medo que pegasse fogo aos cortinados. Provou a sua teoria, mas nunca foi reconhecido como um homem inteligente, foi sempre gozado pela sociedade.
Acabou os seus dias fugindo à inquisição, morreu em Toledo no dia 19 de novembro de 1724.

Bartolomeu de Gusmão, o padre Voador

«(...) fiz um balão que ardeu , depois construí outro que subiu até ao tecto duma sala do paço, enfim outro que saiu por uma janela da Casa da Índia e ninguém tornou a ver(...) Tenho sido a risada da corte e dos poetas, um deles, Tomás Pinto Brandão, chamou ao meu invento coisa de vento que se há-de acabar cedo, se não fosse a protecção de el-rei não sei o que seria de mim (...)

És um homem [padre Bartolomeu dirigindo-se a Baltasar ] natural, nem cascos de mula nem asas de passarola, É assim que se chama a sua máquina, perguntou Baltasar, e o padre respondeu, Assim lhe têm chamado por desprezo.
in Memorial do Convento, ed. RBA, p. 59 a 61

Nesta passagem, o padre Bartolomeu refere como a sociedade da altura reagiu ao seu invento e como a sua pessoa era alvo de chacota e desprezo. Todos os homens que estão à frente do seu tempo são incompreendidos e os seus feitos, só são reconhecidos, muitas das vezes, após a sua morte.

Mas o que é certo, é que o nome do padre Bartolomeu de Gusmão ficou para sempre associado à construção do primeiro balão de ar quente .

Inquisição

«Já passou Sebastiana Maria de Jesus, passaram todos os outros, deu volta inteira a procissão, foram açoitados os que esse castigo haviam tido por sentença, queimadas as duas mulheres, uma primeiramente garrotada por ter declarado que queria morrer, diante das fogueiras armou-se um baile, dançam os homens e as mulheres (...)»
in Memorial do Convento, p. 49 e 50

O Santo Ofício tinha um imenso poder e as pessoas caiam em desgraça por muito pouco, às vezes bastava a inveja do vizinho. Mas custa-me a compreender a atitude das pessoas nesta época. Depois de um espectáculo de humilhação e morte as pessoas fazem como se nada fosse. Dançam felizes e contentes como se nada se tivesse passado? Ou, como se o que se passou foi muito bem feito, pois era esse o devido castigo?

Sobre a inquisição em Portugal aconselho O Último Cabalista de Lisboa e Meia-Noite ou O Princípio do Mundo de Richard Zimler, que traduzem o ambiente e as perseguições feitas em especial aos marranos.

A nossa sociedade evoluiu, mas sabemos que em pleno século XXI a morte e a humilhação, em algumas partes do mundo, continuam a ser práticas correntes. E isto é grave.

26 setembro, 2006

Missas animadas


“Meteu-se Baltazar pela rua larga, em direcção ao Rossio, depois de ter entrado na igreja de Nossa Senhora de Oliveira, onde assistiu a uma missa e trocou sinais com uma mulher sozinha que dele se agradou, divertimento aliás geral, porque mulheres a um lado, homens ao outro, recados, gestos de mãos, movimentos de lenço, trejeitos de boca, piscadelas de olhos, não faziam mais, se não é pecado fazer tanto, que transmitir mensagens, combinar encontros, pactuar acordos...”

In pág. 31, Memorial do Convento

Agora percebo porque se ia tanto a igreja...

24 setembro, 2006

Percevejos


"Quando a cama aqui foi posta e armada, ainda não havia percevejos nela, tão nova era, mas depois, com o uso, o calor dos corpos, as migrações no interior do palácio, ou da cidade para dentro, donde este bichedo vem é que não se sabe. [...] Em noites que vem el-rei, os percevejos começam a atormentar mais tarde por via da agitação dos colchões, são bichos que gostam de sossego e gente adormecida. Lá na cama do rei estão outros à espera do seu quinhão de sangue, que não acham nem pior nem melhor que o restante da cidade, azul ou natural."

O percevejo, como bicho democrático que é, atormentou os leitos de pobres e ricos. Nem reis nem rainhas escaparam às suas picadelas infernais!

Esta falta de higiene que se manteve até ao século XIX arrepia-me. E os percevejos não são disso o único exemplo. As pessoas eram enterradas nas Igrejas e sentia-se o cheiro a carne podre durante as missas, e Lisboa era uma cidade afundada em porcaria. Saramago também nos conta o ambiente vivido na cidada das sete colinas:

"... a cidade é imunda, alcatifada de excrementos, de lixo, de cães lazarentos e gatos vadios, e lama mesmo quando não chove."

De facto, Lisboa era uma pocilga. Os penicos eram despejados para a rua, sendo o único aviso dos que nela transitavam a frase "água vai". Depois deste sinal, era fugir a sete pés!

Definitivamente, o "cheira bem, cheira a Lisboa" não se aplicava nestes tempos...

Santo António

"... fazem de Santo António o mais milagroso dos santos, mormente para encontrar coisas perdidas."

A fé no poder de Santo António para encontrar objectos perdidos mantém-se até aos dias de hoje. Aqui fica um responso ao santo, oração que ajuda a localizar o que se perdeu:

Se milagres desejais,
recorrei a Santo António;
Vereis fugir o demónio
e as tentações infernais.

Recupera-se o perdido,
rompe-se a dura prisão,
e no auge do furacão
cede o mar embravecido.

Pela sua intercessão
foge a peste, o erro, a morte,
e o fraco torna-se forte
e torna-se o enfermo são.

(repete-se Recupera-se o perdido...)

Todos os males humanos
se moderam, se retiram,
digam-nos os que o viram;
Digam-no os paduanos.

(repete-se Recupera-se o perdido...)

23 setembro, 2006

Nobel Lecture

De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz

O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia, Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animalzinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algunas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira." Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para todas as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava... No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?" Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tijela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava : "Não faças caso, em sonhos não há firmeza". Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quanto o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não podería significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolaçao da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.

Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e e esta minha avó Josefa (faltou-me dizer que ela tinha sido, no dizer de quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar), tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver. A mesma atitude de espírito que, depois de haver evocado a fascinante e enigmática figura de um certo bisavô berbere, me levaria a descrever mais ou menos nestes termos um velho retrato (hoje já com quase oitenta anos) onde os meus pais aparecem: "Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e do outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia... Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas neoclássicas". E terminava: "Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de Àfrica, um outro avô pastor de porcos, uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato - que outra genealogia pode importar-me? a que melhor árvore me encostaria?"

Escrevi estas palavras há quase trinta anos, sem outra intenção que não fosse reconstituir e registar instantes da vida das pessoas que me geraram e que mais perto de mim estiveram, pensando que nada mais precisaria de explicar para que se soubesse de onde venho e de que materiais se fez a pessoa que comecei por ser e esta em que pouco a pouco me vim tornando. Afinal, estava enganado, a biologia não determina tudo, e, quanto à genética, muito misteriosos deverão ter sido os seus caminhos para terem dado uma volta tão larga... À minha árvore genealógica (perdôe-se-me a presunção de a designar assim, sendo tão minguada a substância da sua seiva) não faltavam apenas alguns daqueles ramos que o tempo e os sucessivos encontros da vida vão fazendo romper do tronco central, também lhe faltava quem ajudasse as suas raízes a penetrar até às camadas subterrâneas mais fundas, quem apurasse a consistência e o sabor dos seus frutos, quem ampliasse e robustecesse a sua copa para fazer dela abrigo de aves migrantes e amparo de ninhos. Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtoras da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as outras, as efectivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é defeito mas também naquilo é excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei. Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha chegado a ser.

Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e de tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de autor, como títeres articulados cujas acções não pudessem ter mais efeito em mim que o peso suportado e a tensão dos fios com que os movia. Desses mestres, o primeiro foi, sem dúvida, um medíocre pintor de retratos que designei simplesmente pela letra H., protagonista de uma história a que creio razoável chamar de dupla iniciação (a dele, mas também, de algum modo, do autor do livro), intitulada Manual de Pintura e Caligrafia, que me ensinou a honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustração, os meus próprios limites: não podendo nem ambicionando aventurar-me para além do meu pequeno terreno de cultivo, restava-me a possibilidade de escavar para o fundo, para baixo, na direcção das raízes. As minhas, mas também as do mundo, se podia permitir-me uma ambição tão desmedida. Não me compete a mim, claro está, avaliar o mérito do resultado dos esforços feitos, mas creio ser hoje patente que todo o meu trabalho, de aí para diante, obedeceu a esse propósito e a esse princípio.

Vieram depois os homens e as mulheres do Alentejo, aquela mesma irmandade de condenados da terra a que pertenceram o meu avô Jerónimo e a minha avó Josefa, componeses rudes obrigados a alugar a força dos braços a troco de um salário e de condições de trabalho que só mereceriam o nome de infames, cobrando por menos que nada a vida a que os seres cultos e civilizados que nos prezamos de ser apreciamos chamar, segundo as ocasiões, preciosa, sagrada ou sublime. Gente popular que conheci, enganada por uma Igreja tão cúmplice como beneficiária do poder do Estado e dos terratenentes latifundistas, gente permanentemente vigiada pela polícia, gente, quantas e quantas vezes, vítima inocente das arbitrariedades de uma justiça falsa. Três gerações de uma família de componeses, os Mau-Tempo, desde o começo do século até à Revolução de Abril de 1974 que derrubou a ditadura, passam nesse romance a que dei o título de Levantado do Chão, e foi com tais homens e mulheres do chão levantados, pessoas reais primeiro, figuras de ficção depois, que aprendi a ser paciente, a confiar e a entregar-me ao tempo, a esse tempo que simultaneamente nos vai construindo e destruindo para de novo nos construir e outra vez nos destruir. Só não tenho a certeza de haver assimilado de maneira satisfatória aquilo que a dureza das experiências tornou virtude nessas mulheres e nesses homens: uma atitude naturalmente estóica perante a vida. Tendo em conta, porém, que a liçao recebida, passados mais de vinte anos, ainda permanece intacta na minha memória, que todos os dias a sinto presente no meu espírito como uma insistente convocatória, não perdi, até agora, a esperança de me vir a tornar um pouco mais merecedor da grandeza dos exemplos de dignidade que me foram propostos na imensidão das planícies do Alentejo. O tempo o dirá.

Que outras lições poderia eu receber de um português que viveu no século XVI, que compôs as Rimas e as glórias, os naufrágios e os desencantos pátrios de Os Lusíadas, que foi um génio poético absoluto, o maior da nossa Literatura, por muito que isso pese a Fernando Pessoa, que a si mesmo se proclamou como o Super-Camões dela? Nenhuma lição que estivesse à minha medida, nenhuma lição que eu fosse capaz de aprender, salvo a mais simples que-me poderia ser oferecida pelo homem Luís Vaz de Camões na sua estreme humanidade, por exemplo, a humildade orgulhosa de um autor que vai chamando a todas as portas à procura de quem esteja disposto a publicar-lhe o livro que escreveu, sofrendo por isso o desprezo dos ignorantes de sangue e de casta, a indiferença desdenhosa de um rei e da sua companhia de poderosos, o escárnio com que desde sempre o mundo tem recebido a visita dos poetas, dos visionários e dos loucos. Ao menos uma vez na vida, todos os autores tiveram ou terão de ser Luís de Camões, mesmo se não escreveram as redondilhas de Sôbolos rios... Entre fidalgos da corte e censcores do Santo Ofício, entre os amores de antanho e as desilusões da velhice prematura, entre a dor de escrever e a alegria de ter escrito, foi a este homem doente que regressa pobre da Índia, aonde muitos só iam para enriquecer, foi a este soldado cego de um olho e golpeado na alma, foi a este sedutor sem fortuna que não voltará nunca mais a perturbar os sentidos das damas do paço, que eu pus a viver no palco da peça de teatro chamada Que farei com este livro?, em cujo final ecoa uma outra pergunta, aquela que importa verdadeiramente, aquela que nunca saberemos se alguma vez chegará a ter resposta suficiente: "Que fareis com este livro?" Humildade orgulhosa, foi essa de levar debaixo do braço uma obra-prima e ver-se injustamente enjeitado pelo mundo. Humildade orgulhosa também, e obstinada, estar de querer saber para que irão servir amanhã os livros que andamos a escrever hoje, e logo duvidar que consigam perdurar longamente (até quando?) as razões tranquilizadoras que acaso nos estejam a ser dadas ou que estejamos a dar a nós próprios. Ninguém melhor se engana que quando consente que o enganem os outros...

Aproximam-se agora um homem que deixou a mão esquerda na guerra e uma mulher que veio ao mundo com o misterioso poder de ver o que há por trás da pele das pessoas. Ele chama-se Baltasar Mateus e tem a alcunha de Sete-Sóis, a ela conhecem-na pelo nome de Blimunda, e também pelo apodo de Sete-Luas que lhe foi acrescentado depois, porque está escrito que onde haja um sol terá de haver uma lua, e que só a presença conjunta e harmoniosa de um e do outro tornará habitável, pelo amor, a terra. Aproxima-se também um padre jesuíta chamado Bartolomeu que inventou uma máquina capaz de subir ao céu e voar sem outro combustível que não seja a vontade humana, essa que, segundo se vem dizendo, tudo pode, mas que não pôde, ou não soube, ou não quis, até hoje, ser o sol e a lua da simples bondade ou do ainda mais simples respeito. São três loucos portugueses do século XVIII, num tempo e num país onde floresceram as superstições e as fogueiras da Inquisição, onde a vaidade e a megalomania de um rei fizeram erguer um convento, um palácio e uma basílica que haveriam de assombrar o mundo exterior, no caso pouco provável de esse mundo ter olhos bastantes para ver Portugal, tal como sabemos que os tinha Blimunda para ver o que escondido estava... E também se aproxima uma multidão de milhares e milhares de homens com as mãos sujas e calosas, com o corpo exausto de haver levantado, durante anos a fio, pedra a pedra, os muros implacáveis do convento, as salas enormes do palácio, as colunas e as pilastras, as aéreas torres sineiras, a cúpula da basílica suspensa sobre o vazio. Os sons que estamos a ouvir são do cravo de Domenico Scarlatti, que não sabe se deve rir ou chorar... Esta é a história de Memorial do Convento, um livro em que o aprendiz de autor, graças ao que lhe vinha sendo ensinado desde o antigo tempo dos seus avós Jerónimo e Josefa, já conseguiu escrever palavras como estas, donde não está ausente alguma poesia: "Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem um coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu". Que assim seja.

De lições de poesia sabia já alguma coisa o adolescente, aprendidas nos seus livros de texto quando, numa escola de ensino profissional de Lisboa, andava a preparar-se para o ofício que exerceu no começo da sua vida de trabalho: o de serralheiro mecânico. Teve também bons mestres da arte poética nas longas horas nocturnas que passou em bibliotecas públicas, lendo ao acaso de encontros e de catálogos, sem orientação, sem alguém que o aconselhasse, com o mesmo assombro criador do navegante que vai inventando cada lugar que descobre. Mas foi na biblioteca da escola industrial que O Ano da Morte de Ricardo Reis começou a ser escrito... Ali encontrou um dia o jovem aprendiz de serralheiro (teria então 17 anos) uma revista - "Atena" era o título - em que havia poemas assinados com aquele nome e, naturalmente, sendo tão mau conhecedor da cartografia literária do seu país, pensou que existia em Portugal um poeta que se chamava assim: Ricardo Reis. Não tardou muito tempo, porém, a saber que o poeta propriamente dito tinha sido um tal Fernando Nogueira Pessoa que assinava poemas com nomes de poetas inexistentes nascidos na sua cabeça e a que chamava heterónimos, palavra que não constava dos dicionários da época, por isso custou tanto trabalho ao aprendiz de letras saber o que ela significava. Aprendeu de cor muitos poemas de Ricardo Reis ("Para ser grande sê inteiro/Põe quanto és no mínimo que fazes"), mas não podia resignar-se, apesar de tão novo e ignorante, que um espírito superior tivesse podido conceber, sem remorso, este verso cruel: "Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo". Muito, muito tempo depois, o aprendiz, já de cabelos brancos e um pouco mais sábio das suas próprias sabedorias, atreveu-se a escrever um romance para mostrar ao poeta das Odes alguma coisa do que era o espectáculo do mundo nesse ano de 1936 em que o tinha posto a viver os seus últimos dias: a ocupaçao da Renânia pelo exército nazista, a guerra de Franco contra a República espanhola, a criação por Salazar das milícias fascistas portuguesas. Foi como se estivesse a dizer-lhe: "Eis o espectáculo do mundo, meu poeta das amarguras serenas e do cepticismo elegante. Disfruta, goza, contempla, já que estar sentado é a tua sabedoria...".

O Ano da Morte de Ricardo Reis terminava com umas palavras melancólicas: "Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera". Portanto, não haveria mais descobrimentos para Portugal, apenas como destino uma espera infinita de futuros nem ao menos imagináveis: só o fado do costume, a saudade de sempre, e pouco mais... Foi então que o aprendiz imaginou que talvez houvesse ainda uma maneira de tornar a lançar os barcos à água, por exemplo, mover a própria terra e pô-la a navegar pelo mar fora. Fruto imediato do ressentimento colectivo português pelos desdéns históricos de Europa (mais exacto seria dizer fruto de um meu ressentimento pessoal...), o romance que então escrevi - A Jangada de Pedra - separou do continente europeu toda a Península Ibérica para a transformar numa grande ilha flutuante, movendo-se sem remos, nem velas, nem hélices em direcção ao Sul do mundo, "massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus animais", a caminho de uma utopia nova: o encontro cultural dos povos peninsulares com os povos do outro lado do Atlântico, desafiando assim, a tanto a minha estratégia se atreveu, o domínio sufocante que os Estados Unidos da América do Norte vêm exercendo naquelas paragens... Uma visão duas vezes utópica entenderia esta ficção política como uma metáfora muito mais generosa e humana: que a Europa, toda ela, deverá deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética. As personagens da Jangada de Pedra - duas mulheres, três homens e um cão - viajam incansavelmente através da península enquanto ela vai sulcando o oceano. O mundo está a mudar e eles sabem que devem procurar em si mesmos as pessoas novas em que irão tornar-se (sem esquecer o cão, que não é um cão como os outros...). Isso lhes basta.

Lembrou-se então o aprendiz de que em tempos da sua vida havia feito algumas revisões de provas de livros e que se na Jangada de Pedra tinha, por assim dizer, revisado o futuro, não estaria mal que revisasse agora o passado, inventando um romance que se chamaria História do Cerco de Lisboa, no qual um revisor, revendo um livro do mesmo título, mas de História, e cansado de ver como a dita História cada vez é menos capaz de surpreender, decide pôr no lugar de um "sim" um "não", subvertendo a autoridade das"verdades históricas". Raimundo Silva, assim se chama o revisor, é um homem simples, vulgar, que só se distingue da maioria por acreditar que todas as coisas têm o seu lado visível e o seu lado invisível e que não saberemos nada delas enquanto não lhes tivermos dado a volta completa. De isso precisamente se trata numa conversa que ele tem com o historiador. Assim: "Recordo-lhe que os revisores já viram muito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lho eu, é de história, Não sendo propósito meu apontar outras contradições, senhor doutor, em minha opinião tudo quanto não for vida é literatura, A história também. A história sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a música, A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis, Espero que não esteja esquecido de que a humanidade começou a pintar muito antes de saber escrever, Conhece o rifão, se não tens cão caça com o gato, ou, por outras palavras, quem não pode escrever, pinta, ou desenha, é o que fazem as crianças, O que você quer dizer, por outras palavras, é que a literatura já existia antes de ter nascido, Sim senhor, como o homem, por outras palavras, antes de o ser já o era, Quer-me parecer que você errou a vocação, devia era ser historiador, Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem fazer sem o preparo, muita sorte já foi ter vindo ao mundo com a genética arrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois não mais polimento que primeiras letras que ficaram únicas, Podia apresentar-se como autodidacta, produto do seu próprio e digno esforço, não é vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha orgulho nos seus autodidactas, isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os autodidactas são vistos com maus olhos, só os que escrevem versos e histórias para distrair é que estão autorizados a ser autodidactas, mas eu para a criação literária nunca tive jeito, Então, meta-se a filósofo, O senhor doutor é um humorista, cultiva a ironia, chego a perguntar-me como se dedicou à história, sendo ela tão grave e profunda ciência, Sou irónico apenas na vida real, Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real, literatura, sim, e nada mais, Mas a história foi vida real no tempo em que ainda não se lhe poderia chamar história, Então o senhor doutor acha que a história e a vida real, Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Não tenho a menor dúvida, Que seria de nós se o deleatur que tudo apaga não existisse, suspirou o revisor". Escusado será acrescentar que o aprendiz aprendeu com Raimundo Silva a lição da dúvida. Já não era sem tempo.

Ora, foi provavelmente esta aprendizagem da dúvida que o levou, dois anos mais tarde, a escrever O Evangelho segundo Jesus Cristo. É certo, e ele tem-no dito, que as palavras do título lhe surgiram por efeito de uma ilusão de óptica, mas é legítimo interrogar-nos se não teria sido o sereno exemplo do revisor o que, nesse meio tempo, lhe andou a preparar o terreno de onde haveria de brotar o novo romance. Desta vez não se tratava de olhar por trás das páginas do Novo Testamento à procura de contrários, mas sim de iluminar com uma luz rasante a superfície delas, como se faz a uma pintura, de modo a fazer-lhe ressaltar os relevos, os sinais de passagem, a obscuridade das depressões. Foi assim que o aprendiz, agora rodeado de personagens evangélicas, leu, como se fosse a primeira vez, a descrição da matança dos Inocentes, e, tendo lido, não compreendeu. Não compreendeu que já pudesse haver mártires numa religião que ainda teria de esperar trinta anos para que o seu fundador pronunciasse a primeira palavra dela, não compreendeu que não tivesse salvado a vida das crianças de Belém precisamente a única pessoa que o poderia ter feito, não compreendeu a ausência, em José, de um sentimento mínimo de responsabilidade, de remorso, de culpa, ou sequer de curiosidade, depois de voltar do Egipto com a família. Nem se poderá argumentar, em defesa da causa, que foi necessário que as crianças de Belém morressem para que pudesse salvar-se a vida de Jesus: o simples senso comum, que a todas as coisas, tanto às humanas como às divinas, deveria presidir, aí está para nos recordar que Deus não enviaria o seu Filho à terra, de mais a mais com o encargo de redimir os pecados da humanidade, para que ele viesse a morrer aos dois anos de idade degolado por um soldado de Herodes... Nesse Evangelho, escrito pelo aprendiz com o respeito que merecem os grandes dramas, José será consciente da sua culpa, aceitará o remorso em castigo da falta que cometeu e deixar-se-á levar à morte quase sem resistência, como se isso lhe faltasse ainda para liquidar as suas contas com o mundo. O Evangelho do aprendiz não é, portanto, mais uma lenda edificante de bem-aventurados e de deuses, mas a história de uns quantos seres humanos sujeitos a um poder contra o qual lutam, mas que não podem vencer. Jesus, que herdará as sandálias com que o pai tinha pisado o pó dos caminhos da terra, também herdará dele o sentimento trágico da responsabilidade e da culpa que nunca mais o abandonará, nem mesmo quando levantar a voz do alto da cruz: " Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez", por certo referindo-se ao Deus que o levara até ali, mas quem sabe se recordando ainda, nessa agonia derradeira, o seu pai autêntico, aquele que, na carne e no sangue, humanamente o gerara. Como se vê, o aprendiz já tinha feito uma larga viagem quando no seu herético Evangelho escreveu as últimas palavras do diálogo no templo entre Jesus e o escriba: "A culpa é um lobo que come o filho depois de ter devorado o pai, disse o escriba, Esse lobo de que falas já comeu o meu pai, disse Jesus, Então só falta que te devore a ti, E tu, na tua vida, foste comido, ou devorado, Não apenas comido e devorado, mas vomitado, respondeu o escriba".

Se o Imperador Carlos Magno não tivesse estabelecido no Norte da Alemanha um mosteiro, se esse mosteiro não tivesse dado origem à cidade de Münster, se Münster não tivesse querido assinalar os mil e duzentos anos da sua fundação com uma ópera sobre a pavorosa guerra que enfrentou no século XVI protestantes anabaptistas e católicos, o aprendiz não teria escrito a peça de teatro a que chamou In Nomine Dei. Uma vez mais, sem outro auxílio que a pequena luz da sua razão, o aprendiz teve de penetrar no obscuro labirinto das crenças religiosas, essas que com tanta facilidade levam os seres humanos a matar e a deixar-se matar. E o que viu foi novamente a máscara horrenda da intolerância, uma intolerância que em Münster atingiu o paroxismo demencial, uma intolerância que insultava a própria causa que ambas as partes proclamavam defender. Porque não se tratava de uma guerra em nome de dois deuses inimigos, mas de uma guerra em nome de um mesmo deus. Cegos pelas suas próprias crenças, os anabaptistas e os católicos de Münster não foram capazes de compreender a mais clara de todas as evidências: no dia do Juízo Final, quando uns e outros se apresentarem a receber o prémio ou o castigo que mereceram as suas acções na terra, Deus, se em suas decisões se rege por algo parecido à lógica humana terá de receber no paraíso tanto a uns como aos outros, pela simples razão de que uns e outros nele crêem. A terrível carnificina de Münster ensinou ao aprendiz que, ao contrário do que prometeram, as religiões nunca serviram para aproximar os homens, e que a mais absurda de todas as guerras é uma guerra religiosa, tendo em consideração que Deus não pode, ainda que o quisesse, declarar guerra a si próprio...

Cegos. O aprendiz pensou: "Estamos cegos", e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante. Depois, aprendiz, como se tentasse exorcizar os monstros engendrados pela cegueira da razão, pôs-se a escrever a mais simples de todas as histórias: uma pessoa que vai à procura de outra pessoa apenas porque compreendeu que a vida não tem nada mais importante que pedir a um ser humano. O livro chama-se Todos os Nomes. Não escritos, todos os nossos nomes estão lá. Os nomes dos vivos e os nomes dos mortos.

Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo.

José Saramago, Prémio Nobel da Literatura 1998

Fonte

Obrigada Rui Pedro pela sugestão.

Blogue sobre Saramago

Blogue sobre a obra literária de José Saramago, pode ser consultado aqui.

21 setembro, 2006

Petisco de pobre

(imagem retirada do blogue cinco quartos de laranja)

"Quando Sete-Sóis chegou a Aldegalega, estava anoitecendo. Comeu umas sardinhas fritas, bebeu uma tigela de vinho, e não lhe chegando o dinheiro para a pousada, tão-só, à escassa, para a passagem de amanhã, meteu-se num telheiro, debaixo de uns carros, e aí dormiu..."
"Baltazar comprou três sardinhas assadas, que, sobre a indespensável fatia de pão, soprando e mordiscando, comeu enquanto caminhava em direcção ao Terreiro do Paço..."
In pág. 26 e 29, Memorial do Convento
A sardinha foi em tempos comida dos pobres, hoje em dia chega-se a pagar dois euros por sardinha no pão na noite de Santo António. Seja pelo preço ou não, a sardinha têm vindo a tornar-se requintada, vejam lá esta receita e digam se não tenho razão.
Lasanha de Beringela com Sardinha
Ingredientes
- 1 beringela grande fatiada em 4
- 4 filés de sardinha
- 1 tomate cortado em rodelas
- 1/2 cebola cortada em rodelas
- 1/2 pimentão verde cortado em tiras
- 1 dente de alho amassado - sal e pimenta a gosto
- suco de 1 limão - 1 xícara (chá) de molho de tomate
- 1/2 xícara (chá) de ricota esfarelada
- 2 colheres (sopa) de salsinha picada
- 1 colher (chá) de noz moscada ralada

Modo de Preparo
Deixe as fatias de beringela, com casca, de molho por 30 minutos em água com a metade do o suco de limão. Tempere os filés de sardinha com alho, sal, pimenta e o restante do limão. Arrume em um refratário, metade do molho de tomate, 2 beringelas, os filés de sardinha temperados, o tomate cortado em rodelas, o pimentão, a cebola, metade da salsinha, mais duas fatias de beringela, o restante do molho e por último a ricota. Polvilhe com a noz moscada e cubra o refratário com papel alumínio. Leve ao forno por 15 minutos em forno médio e pré-aquecido. Retire o papel e deixe dourar. Depois de dourado, salpique o restante da salsinha.
Eu por mim continuo a preferir o pão na bela da sardinha.

19 setembro, 2006

Convento de Mafra


(...) "Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de me dizer sua eminência, que se prometer levantar um Convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor...”

In Pág. 9 , Memorial do Convento
Bendita promessa...

A ida do rei ao quarto da rainha

«Entram com el-rei dois camaristas que o aliviam das roupas supérfluas, e o mesmo faz a marquesa à rainha, de mulher para mulher, com ajuda doutra dama, condessa, mais uma camareira-mor não menos graduada que veio da Áustria, está o quarto uma assembleia, as majestades fazem mútuas vénias, nunca mais acaba o cerimonial, enfim lá se retiram os camaristas por uma porta, as damas por outra, e nas antecâmaras ficarão esperando que termine a função, para que el-rei regresse acompanhado ao seu quarto (...) e venham as damas a este aconchegar D. Maria Ana (...).
Vestem a rainha e o rei camisas compridas, que pelo chão arrastam (...). D. João V conduz D. Maria Ana ao leito, leva-a pela mão como no baile o cavaleiro à dama, e antes de subirem os degrauzinhos, cada um de seu lado, ajoelham-se e dizem as orações acautelantes necessárias, para que não morram no momento do acto carnal, sem confissão, para que desta nova tentativa venha a resultar fruto (...)»

in Memorial do Convento, P. 10 e 11, Ed. Narrativa Actual

A ida do rei ao quarto da rainha, para um acto íntimo, era uma verdadeira cerimónia.

18 setembro, 2006


O livro Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago vai passar para ao cinema.

A realização fica a cargo de Fernando Meirelles, autor de filmes como a Cidade de Deus e Fiel Jardineiro. O filme será rodado entre Toronto e São Paulo, com um orçamento de 15,7 milhões de euros e a sua estreia está prevista para 2008.

O título em inglês vai ser Blindness.
Pena que não façam um filme de época baseado no Memorial do Convento, tenho a certeza que ia dar um bom argumento.

16 setembro, 2006

Curiosidade ...

Foi D. João V quem mandou construir o Aqueduto das Águas Livres, com o intuito de resolver o problema de abastecimento de água à cidade de Lisboa. As obras começaram em Agosto de 1732 e o abastecimento fez-se, pela primeira vez, nos finais de Outubro de 1744.

15 setembro, 2006

O Rei e a Rainha






















«D. João, quinto do seu nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou.»

in Memorial do Convento, P. 7, RBA

É com esta frase que se inicia a obra, O Memorial do Convento, que o À Volta das Letras propõe para leitura durante o mês de Setembro. Nas três páginas iniciais, Saramago vai expondo algumas ideias, da época, sobre a fertilidade. Diz ele:

«Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é um mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes (...)» P. 7

«(...) porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber (...)» P. 9

«(...) nem a persistência do rei, que, salvo dificultação canónica ou impedimento fisiológico, duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal, nem a paciência e humildade da rainha que, a mais das preces, se sacrifica a uma imobilidade total depois de retirar-se de si e da cama o esposo, para que não se perturbem em seu gerativo acomodamento os líquidos comuns (...)» P. 7 e 8

«O cântaro está à espera da fonte» P. 9

A mulher era vista apenas como um receptáculo.

P.S. Os sublinhados (bold) são meus.

14 setembro, 2006

Opinião

“Sobre as páginas de um livro pode-se chorar, mas não sobre o ecrã de um computador”
Palavras de José Saramago, prémio Nobel da Literatura, proferidas em Rosario, Argentina, onde defendeu que o livro sobreviverá à internet.
Diário de Notícias de 21 de Novembro de 2004
José Saramago defende que a internet não vai subsituir os livros.
Estou de acordo, há muito num livro para além da sua leitura. Quanto a vocês não sei, mas eu quando pego num livro a primeira coisa que faço é cheirá-lo (uma mania estranha), depois gosto de passar a mão pelas páginas, olho bem para ele, abro, fecho e só depois deste ritual é que o leio.

Será muito dificil os livros serem trocados pelos computadores.

13 setembro, 2006

Poema

Poema à boca fechada


Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.


(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)

José Saramago
Saramago Poeta, confesso que para mim foi uma surpresa agradável!
Desconhecia este seu lado e apesar de não ser uma apreciadora de poesia, tenho gostado do que tenho lido.

12 setembro, 2006

Biografia

José Saramago nasceu a 16 de Novembro de 1922, na Azinhaga (Golegã). Veio para Lisboa aos 3 anos com os seus pais, estudou até fazer o ensino secundário (liceal e técnico). Por dificuldades financeiras começou a trabalhar abandonando os estudos.

Pode-se dizer que Saramago foi um homem dos sete ofícios. Começou por ser serralheiro mecânico, depois desenhador, funcionário da saúde, editor, tradutor, jornalista. Esteve 12 anos na revista Seara Nova. Passou pelo Diário de Lisboa, como comentador politico, de Abril a Novembro de 1975. Foi também director adjunto do Diário de Noticias.

A partir de 1976 dedica-se exclusivamente a escrita. Vive actualmente em Lanzarote, nas ilhas Canárias.
É acusado de ser polémico, devido as suas opiniões sobre a religião e politica.

Saramago é um dos escritores portugueses mais premiados de sempre, recebeu o Prémio Nobel em 1998, é apelidado por muitos como o “mestre” da literatura portuguesa.

Obras publicadas:


Poesia

· Os Poemas Possíveis, 1966
· Provavelmente Alegria, 1970
· O Ano de 1993, 1975

Crónica

· Deste Mundo e do Outro, 1971
· A Bagagem do Viajante, 1973
· As Opiniões que o DL teve, 1974
· Os Apontamentos, 1976

Diário

· Cadernos de Lanzarote I, 1994
· Cadernos de Lanzarote II, 1995
· Cadernos de Lanzarote III, 1996
· Cadernos de Lanzarote IV

Viagem

· Viagem a Portugal, 1981

Teatro

· A Noite, 1979
· Que Farei Com Este Livro?, 1980
· A Segunda Vida de Francisco de Assis, 1987
· In Nomine Dei, 1993

Conto

· Objecto Quase, 1978
· Poética dos Cinco Sentidos - O Ouvido, 1979

Infanto-juvenil
· A Maior Flor do Mundo, 2002

Romance

· Manual de Pintura e Caligrafia, 1977
· Levantado do Chão, 1980
· Memorial do Convento, 1982
· O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984
· A Jangada de Pedra, 1986
· História do Cerco de Lisboa, 1989
· O Evangelho Segundo Jesus Cristo, 1991
· Ensaio sobre a Cegueira, 1995
· Terra do Pecado, 1997
· Todos os Nomes, 1997
· A Caverna, 2000
· O Homem Duplicado, 2002
· Ensaio sobre a Lucidez, 2004
· As Intermitências da Morte, 2005

10 setembro, 2006

Hoje de manhã...

Estivemos lá!!
Desta vez no Mosteiro de São Vicente de Fora. Falou-se das leituras de Verão, dos teatros que vimos, dos sítios que visitámos, do que queremos ver em Outubro e até se trocaram livros...
E claro, falámos do livro, que nos trouxesse a este encontro, A Lua pode esperar de Gonçalo Cadilhe.
Desta leitura, todos concordaram que se leu muito bem, que foi uma boa sugestão para o mês de Agosto, que nos abriu novos horizontes. Enfim, foi um livro que gostámos de ler.
Para o próximo encontro, dia 8 de Outubro às 10h30, escolhemos o Memorial do Convento, de José Saramago. O local de encontro é o Convento de Mafra.
A sugestão fica feita.
Boas leituras.

08 setembro, 2006

Post It

Este post é só para lembrar que o nosso encontro é já no Domingo, às 10h30 no Mosteiro de São Vicente de Fora. Quem não leu o livro, não se preocupe pois não é o único.
Já agora tragam sugestões de novas leituras e de novos locais para os encontros.
Até Domingo!

04 setembro, 2006

Imprevistos...


Vamos ter de alterar o dia e local do encontro. No dia 9 a Cafetaria da Regaleira vai estar fechada, pois vai haver uma casamento na Quinta, (que sorte poder casar num sítio daqueles), calculo que algumas zonas, inclusive o Palácio não estejam acessíveis ao público.
Por isso decidimos adiar esta visita talvez para o próximo encontro.
Sendo assim, a nova data do encontro é dia 10/09 às 10h30, na Cafetaria do Mosteiro de São Vicente de Fora, diz quem já conhece ser um espaço magnífico. Vamos ver.
Quem precisar de mais informações, pode contactar-nos por e-mail.
A foto foi roubada do Canal Caveira.